Cobrança é um assunto de suma importância desde a edição do novo Marco do Saneamento Básico
Isadora Cohen
Luisa Dubourcq Santana
Felipe Gurman Schwartz
Publicado originalmente no JOTA
Já faz quase 20 anos, mas os moradores da maior metrópole do país ainda guardam em sua memória quando, em meados de 2003, a então prefeita de São Paulo, Marta Suplicy, instituiu a Taxa de Resíduos Sólidos Domiciliares, que implantou a cobrança pela coleta de resíduos sólidos na cidade.
Apesar dos resultados alcançados a partir da instituição do tributo, que contribuiu para uma redução de 10% na geração de resíduos sólidos em relação aos anos anteriores, houve uma oposição ferrenha a qualquer tipo de cobrança pelo manejo dos resíduos sólidos. Não à toa, a taxa foi descontinuada em 2005 e nunca mais foi reestabelecida[1] na capital paulista.
A oposição à cobrança, vale sublinhar, não é uma exclusividade do paulistano. Atualmente, apenas 47% dos municípios brasileiros possuem algum tipo de arrecadação específica para sustentar as atividades de limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos[2].
A cobrança pela prestação de tais serviços ganhou, entretanto, uma nova roupagem com a Lei 14.026/2020, na qual se estabeleceu que os serviços públicos de saneamento básico terão sua sustentabilidade econômico-financeira assegurada por meio de remuneração pela cobrança dos serviços. No caso das atividades de limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos, a cobrança poderá se dar na forma de taxas, tarifas ou outros preços públicos (art. 29, II, da Lei 11.445/2007, com a redação conferida pela Lei 14.026/2020).
Uma parcela dos leitores já deve ter se questionado acerca da aplicação da tarifa nesse caso. Tarifa para resíduos sólidos? Como será o cálculo e a cobrança? No que irá diferir da taxa?
De início, vale ressaltar que a tarifa não possui natureza tributária, se constitui como preço público. Ou seja, enquanto a taxa – por ser um tributo – precisa de aval legislativo, a tarifa é instituída mediante contrato ou ato administrativo.
Na prática, a cobrança de tarifa pelos serviços de resíduos sólidos já é realizada de maneira consolidada em municípios catarinenses, em especial Balneário Camboriú e Joinville, onde a cobrança se dá, pela própria concessionária, desde os anos 2000.
Mais recentemente, com a concessão dos serviços de limpeza urbana e manejo dos resíduos sólidos, outros municípios têm optado pela tarifa, enfrentando algumas das questões que se impõem a este tipo de cobrança.
A discussão se coloca em torno de como proporcionalizar e calcular a tarifa de resíduos sólidos, dado que a cobrança individualizada e por peso dos resíduos é de difícil aplicação. A solução que tem se mostrado mais viável é a da cobrança por volume de água consumido – seja de maneira única ou aplicada a certo fator de localização ou de uso do imóvel.[3]
Nesses casos, a gestão comercial torna-se ponto-chave do projeto, haja vista que o valor a ser cobrado e a própria cobrança passam a ser dependentes da prestadora dos serviços de abastecimento de água potável.
Para ilustrar, é interessante analisar o caso pioneiro da concessão de resíduos sólidos do Convale (Consórcio Intermunicipal de Desenvolvimento Regional do Vale do Rio Grande), o primeiro contrato regional do setor e que foi a leilão nesta semana. Nesse projeto, que reúne oito cidades de Minas Gerais, a cobrança da tarifa de resíduos sólidos se dá junto à tarifa de água e esgoto.
Na prática, a tarifa de resíduos sólidos será somada à de água e esgoto e cobrada em um único código de barras. A destinação será uma conta de arrecadação da prestadora dos serviços de água e esgoto, que destinará, em seguida, os valores respectivos para uma conta transitória da concessionária de resíduos sólidos. Já a gestão comercial fica a cargo da prestadora dos serviços de água e esgoto.
Outro exemplo é a concessão de resíduos sólidos de Bauru (SP), que ainda se encontra em fase de consulta pública. Nesse caso, a tarifa será calculada, de igual modo, com base no volume de água consumido, enquanto a gestão comercial vai ser realizada pelo DAE (autarquia municipal de água e esgoto), com algumas atribuições compartilhadas com a concessionária. Já as tarifas de resíduos sólidos são creditadas diretamente na conta da concessionária, por meio de código de barras específico.
Mas por que a discussão sobre gestão comercial da tarifa de resíduos sólidos é tão relevante? Estamos falando, aqui, não apenas das regras que nortearão a cobrança da fatura, mas, também, dos procedimentos de inadimplência, da leitura e medição do consumo de água e da própria gestão cadastral dos usuários.
O caso de Bauru se mostra ainda mais inovador ao propor uma minuta de convênio de cooperação a ser celebrado entre o DAE e a concessionária para fins de gestão comercial. O convênio tem o condão de garantir que, caso haja a concessão dos serviços de água e esgoto e a consequente substituição do DAE, não se coloquem barreiras, pelo novo prestador dos serviços públicos de abastecimento de água e esgotamento sanitário, à cobrança e ao cálculo da tarifa de resíduos sólidos.
A gestão comercial pode, também, ser feita pelo próprio parceiro privado. Além dos municípios catarinenses citados, o inovador projeto de São Simão (GO), que concedeu, no mesmo contrato, os serviços de abastecimento de água, esgotamento sanitário e manejo de resíduos sólidos, segue a mesma linha. Nesse caso, tanto a cobrança da tarifa de água e esgoto quanto a de resíduos sólidos é feita pela concessionária, assim como toda a gestão cadastral dos usuários e os procedimentos de inadimplência.
Em síntese, a gestão comercial pode ser delegada à concessionária dos serviços de saneamento básico, mesmo que ela não preste todos os serviços da cadeia. Nesse sentido, é de fundamental importância a mitigação dos riscos de inadimplência, que devem ser absorvidos, pelo menos no primeiro momento, pelo poder concedente.
Justamente por isso que a contratualização da gestão comercial é necessária. Na eventualidade de se mudarem as partes – em decorrência de o município, em linha com o Marco Legal do Saneamento Básico, delegar algum dos serviços de saneamento –, se garante que a gestão comercial será mantida e aprimorada, dando segurança ao projeto.
É interessante olhar, ainda, como este complexo arcabouço de cobrança contribui para que se mitiguem eventuais resistências sociais e políticas à cobrança pela limpeza urbana e manejo dos resíduos sólidos. Pois além de a tarifa não necessitar de aval legislativo, ela será cobrada juntamente aos serviços de água e esgoto, como um acréscimo ao montante já adimplido pelo usuário.
Isso significa que a tarifa é o melhor ou o único caminho? Não, mas tão somente que se trata de um caminho interessante, viável e que os municípios devem olhar com diligência, em especial caso encontrem resistências à taxa. Por óbvio, a escolha do tipo de cobrança passa, invariavelmente, pela dinâmica, pelo contexto e pelas necessidades do município em questão.
Fato é que, desde a edição do novo Marco do Saneamento Básico, a cobrança pelos serviços de limpeza urbana e manejo dos resíduos sólidos, além de obrigatória, se mostra como um assunto de suma importância, ao, por um lado garantir, a sustentabilidade econômico-financeira da prestação dos serviços e, por outro, contribuir, segundo dados do Selurb[4], para uma redução de 8% na geração de resíduos per capita. A tarifa é, portanto, mais um caminho interessante que se abre para mitigar as barreiras à cobrança.
[1] Mais informações podem ser lidas em: https://noticias.r7.com/cidades/prefeitos-tem-ate-o-fim-do-ano-para-cobrar-moradores-por-coleta-de-lixo-09102021
[2] Mais informações podem ser lidas em: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,municipios-devem-acelerar-criacao-de-taxas-para-o-lixo,70003524371
[3] Essa possibilidade de cobrança é admitida pela Resolução nº 79/2021 da Agência Nacional de Águas (ANA).
[4] Na mesma linha, um estudo da Ernest & Young mostrou que, com a cobrança pelo serviço, o consumidor passou a gerar menos resíduos sólidos .Mais informações podem ser lidas em: https://noticias.r7.com/cidades/prefeitos-tem-ate-o-fim-do-ano-para-cobrar-moradores-por-coleta-de-lixo-09102021
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