Acontecimentos recentes mostram que projetos de drenagem urbana não podem esperar
Isadora Chansky Cohen
Luísa Dubourcq Santana
Publicado originalmente no JOTA
Nas últimas semanas, o Brasil assistiu, estarrecido, a diversas notícias de enchentes país afora. Ocorrências catastróficas em estados como Bahia, Minas Gerais, Piauí, Tocantins, Espírito Santo e Maranhão ocuparam os jornais e os prejuízos causados ainda são incalculáveis. De acordo com dados da Agência O Globo[1], são cerca de 110 mil desabrigados no Brasil, além de, ao menos, 45 mortos, pessoas desaparecidas e múltiplos danos de ordem financeira e emocional para os atingidos.
A saída mais adequada e efetiva para esse cenário de crise passa, necessariamente, pela viabilização de projetos de parceria público-privada para os serviços de drenagem.
Embora os impactos sejam sentidos tanto em meios urbanos quanto rurais, é certo que a ocorrência de enchentes nas aglomerações urbanas é ainda mais preocupante. Com efeito, conquanto exista um fator aleatório – a que alguns chamariam “divino” – nos fenômenos naturais, não se pode negar que as catástrofes têm se intensificado nos últimos tempos em razão de questões climáticas. Nesse sentido, o cenário se torna alarmante, tendo em vista que a infraestrutura das cidades para as chuvas é projetada a partir de cálculos hidráulicos de séries históricas, não considerando, portanto, as mudanças climáticas recentes e os novos desafios por ela trazidos.
As últimas enchentes e desastres nos mostram que não se pode mais olhar para trás para o planejamento da infraestrutura de drenagem nas cidades. É preciso compreender o hoje e, a partir daí, traçar estratégias efetivas e inovadoras para a consolidação da infraestrutura necessária para, se não evitar completamente, ao menos minimizar os prejuízos e danos causados em momentos de instabilidade climática. E tais estratégias efetivas, em nosso entender, correspondem à delegação, no modelo de concessão, da prestação dos serviços públicos de drenagem urbana.
Estudos da Fundação João Pinheiro[2] apontam para 25,2% de habitações precárias no Brasil, entre domicílios rústicos e improvisados, sobretudo nas regiões Norte e Nordeste. Além disso, assinalam também para cerca de 25 milhões de domicílios urbanos inadequados no Brasil, seja por questões de infraestrutura, edilícias ou fundiárias. Em outra publicação[3], a FJP indica haver, em 2016, um déficit habitacional de 5,6 milhões de domicílios no país, sendo a maior parte destes (4,8 milhões) em área urbana, sobretudo na região Sudeste.
De forma complementar, estudo do IBGE de 2018[4] acerca da população exposta em área de risco no Brasil também traz dados alarmantes. Apenas a título exemplificativo, e valendo-se de dados do Censo Demográfico de 2010, o estudo aponta que 45,5% da população soteropolitana, 16,4% da população de Belo Horizonte, 26,6% dos moradores de Vitória/ES e 13,4% dos recifenses reside em domicílios em área de risco a desastres naturais.
Não é preciso ir longe nos dados para perceber que, em momentos de crise como o atualmente vivenciado, a situação se agrava e a precariedade das habitações urbanas no país torna o cenário extremamente delicado em momentos de fortes precipitações e enchentes. Não é nada incomum a ocorrência de alagamentos, deslizamentos de barreira, casas e pessoas soterradas e regiões inteiras ilhadas em razão da inadequada infraestrutura de drenagem nos centros urbanos.
Inclusive, o adequado gerenciamento de desastres está atrelado a, ao menos, três Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, quais sejam: ODS 1 – Acabar com a pobreza em todas as suas formas; ODS 11 – Tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis; e ODS 13 – Tomar medidas urgentes para combater a mudança do clima e seus impactos. A priorização de iniciativas para incrementar a infraestrutura de drenagem nos centros urbanos do país, portanto, contribui para o alinhamento estratégico do Brasil à Agenda 2030 da ONU, com todos os benefícios a isto associados – e que podem ser objeto de discussão futura nessa coluna.
Em outras palavras, é mais do que tempo para se priorizar projetos de concessão dos serviços de drenagem nos centros urbanos do Oiapoque ao Chuí.
A drenagem e o manejo das águas pluviais urbanas consistem em componente do serviço de saneamento (na forma do art. 3º, I, “d”, da Lei nº 11.445/2007, com a redação conferida pela Lei nº 14.026/2020), sendo amplamente incentivada, pelo novo marco legal do setor, a delegação destes serviços por meio de concessão. Inclusive, especificamente no que se refere aos serviços de drenagem, o art. 29, III, da referida lei estatui que a sua sustentabilidade econômico-financeira será assegurada por meio da cobrança de tributos, inclusive taxas, ou tarifas e outros preços públicos, em conformidade com o regime de prestação do serviço.
O Município de Santo André/SP, nesse sentido, dispõe de taxa específica para remunerar o serviço de drenagem urbana, instituída por meio de lei municipal ainda em 1997. Trata-se de instrumento interessante que pode viabilizar o aspecto econômico-financeiro de projetos de infraestrutura de drenagem por meio de parcerias com a iniciativa privada, conferindo atratividade e segurança para o investidor e elevando a capacidade de financiamento, a exemplo do que já se faz com as PPPs de iluminação pública, cujo mecanismo de pagamento e garantias é normalmente atrelado à vinculação dos valores recebidos a título de Contribuição de Iluminação Pública (CIP/COSIP), e mesmo nos contratos de água e esgoto, financiados por tarifas cobradas diretamente da população.
Com o apoio da Caixa Econômica Federal e do PPI, os municípios de Teresina e Porto Alegre também conduzem estudos para parcerias público-privadas no setor, buscando encontrar soluções efetivas para a proteção da população contra as cheias e identificando novas fontes de receitas para o custeio da operação, manutenção e investimentos no setor. A Prefeitura do Recife também já demonstrou interesse em desenvolver projetos de drenagem, realizando, recentemente, evento para a captação de recursos para o financiamento da modelagem dos projetos. O Município de São Paulo, por sua vez, também já chegou a lançar edital de licitação para a concessão administrativa de requalificação e operação de reservatórios de águas pluviais existentes e construção e operação de intervenções de drenagem (“PPP de piscinões”), o que, entretanto, acabou sendo revogado.
Algumas experiências internacionais também merecem ser destacadas: a cidade de Barcelona, na Espanha, sofria com frequentes inundações até a década de 1990. Atualmente, a capital da Catalunha conta com operação conjunta e integrada dos serviços de drenagem e saneamento por meio de concessão, dispondo de sistema de controle remoto e acompanhamento das previsões meteorológicas que possam impactar no sistema de drenagem, realizando avisos contra enchentes e conduzindo medidas preventivas e corretivas que apoiam a tomada de decisões quanto à operação do sistema. Há, assim, um interessante componente tecnológico que pode ser explorado em projetos no Brasil, aliando infraestrutura e inovação para a estruturação de empreendimentos que consigam, por meio de ferramentas digitais, se antecipar às catástrofes e, com isso, minimizar danos à população.
Como se vê, são poucas as iniciativas no Brasil atualmente que busquem soluções inovadoras e efetivas para as cheias e enchentes. Os municípios, costumeiramente, contratam serviços de saneamento e gestão urbana de maneira esparsa e desconectada, acarretando a necessidade de gerenciar múltiplas interfaces e, no limite, uma completa desorientação nos momentos de emergência.
No entanto, uma multiplicidade de formatos efetivos pode ser concebida para as parcerias público-privadas dos serviços de drenagem de águas pluviais urbanas, congregando diversos serviços em um mesmo contrato e, com isso, otimizando e eficientizando a sua prestação. Com efeito, a drenagem urbana é um desafio transversal: seu adequado funcionamento depende de múltiplas atividades (fornecimento de água, saneamento, limpeza urbana, regularização fundiária, monitoramento meteorológico, entre outros) para que consiga fluir de forma satisfatória, ao passo em que o seu desgoverno também impacta no funcionamento e na fluidez urbana de modo geral. Dessa forma, a solução para o serviço deve se dar de maneira global e integrada.
É possível conceber, em um mesmo arranjo contratual, a conjugação de serviços de macro (rede de canais, diques e barragens, por exemplo) e microdrenagem (sistema de tubulações, sarjetas, galerias, bocas-de-lobo), além da operação de serviços de limpeza urbana e ferramentas tecnológicas para o alerta de enchentes, que interferem diretamente na drenagem. De forma complementar, é possível também conceber arranjo em que o concessionário se responsabiliza pelo apoio ao Município na regularização fundiária das áreas urbanas abrangidas pela PPP de drenagem, contribuindo para a adequação do tecido urbano.
Além disso, deve-se considerar que a existência de oásis verdes nos centros urbanos figura como importante fator de equilíbrio climático. Nesse sentido, ainda que de forma complementar ou acessória, é possível também vislumbrar o desenvolvimento de iniciativas conjugadas de infraestrutura e conservação verde com projetos de drenagem, seja de forma ampla (estruturando no pipeline de projetos do ente público, em estratégia conjunta, a concessão de ativos verdes e a delegação dos serviços de drenagem, a prestadores distintos), ou mais restrita, estabelecendo como obrigação acessória do prestador dos serviços de drenagem a conservação de alguns ativos verdes em âmbito local.
A parceria público-privada é, portanto, boia salva-vidas nesse mar de enchentes. A trágica realidade dos últimos acontecimentos – que parecem se repetir com periodicidade cada vez maior – mostra que a priorização de projetos de drenagem urbana não pode esperar. Dispor de sua adequada infraestrutura, por meio de parcerias público-privadas para a estruturação de projetos e a operação do serviço, de forma global, inovadora e tecnológica, permite que o Poder Público desloque recursos e esforços para outras áreas de interesse coletivo, inclusive podendo viabilizar projetos de infraestrutura em outros setores.
[1] https://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2022-01-11/enchentes-desabrigados-pais.html [2] http://novosite.fjp.mg.gov.br/wp-content/uploads/2020/12/04.03_Cartilha_DH_compressed.pdf [3] http://novosite.fjp.mg.gov.br/wp-content/uploads/2021/04/21.05_Relatorio-Deficit-Habitacional-no-Brasil-2016-2019-v2.0.pdf [4] https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101589.pdf
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