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O papel do Poder Judiciário na implementação no Novo Marco Legal do Saneamento Básico

De deferência administrativa ao limite de subdelegação da prestação de serviços: qual o papel do Poder Judiciário no Novo Marco do Saneamento Básico?



Isadora Chansky Cohen

Luisa Dubourcq Santana

Victoria Spera Sanchez

Carolina Carelli


Publicado originalmente no JOTA


A relação entre o Poder Judiciário e a Administração Pública é tema antigo de debate no Direito Público. Apesar de já ter sido gasta muita tinta com os limites de atuação dos juízes na seara das políticas públicas, a questão sempre fará parte do nosso cotidiano, uma vez que o controle é elemento do arranjo constitucional brasileiro. Com o Novo Marco do Saneamento Básico, novos desafios foram postos e, claro, o Poder Judiciário faz parte dessa solução. E de que forma ele tem atuado e o que ainda pode ser objeto de sua análise quando o assunto é saneamento básico?

Em dezembro de 2021, o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade do Novo Marco do Saneamento, objeto de quatro ADIs. Segundo o STF, a nova regulamentação para o setor foi aprovada de forma legítima pelo Congresso Nacional, visando maior eficácia da prestação desses serviços e sua universalização​, reduzindo as desigualdades sociais e regionais.

Superada a análise de constitucionalidade, o Novo Marco do Saneamento ganha vida no mundo real. Com isso, as dificuldades que obras de infraestrutura enfrentam, sobretudo quando têm por objeto questões tão socialmente relevantes como o saneamento, chegam até o Judiciário.

Em artigo anterior (https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/infra/saneamento-apos-novo-marco-panorama-futuro-18022022), esta coluna já relatou os desafios de implementação da infraestrutura de saneamento, seja pela inexistência desse sistema em determinadas regiões, seja pela escassez de bens e equipamentos herdada da pandemia.

Acompanhando os acontecimentos no setor de saneamento básico, recentemente a Segunda Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região se manifestou sobre o tema, após a interposição de recurso pelo Ministério Público, em sede de Ação Civil Pública contra um município do Estado de Sergipe e os departamentos de água envolvidos no contexto do saneamento regional.

O Tribunal, diante da falta da infraestrutura de saneamento em pequenos povoados e do atraso de uma obra para tanto, decidiu que não cabe ao Judiciário a interferência em políticas públicas e “não lhe compete ordenar a aplicação dos recursos nessa ou naquela obra ou atividade, elegendo prioridades e exercendo juízo de conveniência e oportunidade”[1].

O Tribunal reconheceu em sua decisão as consequências de ordem sanitária, ambiental e social que o atraso na entrega das obras acarreta. No entanto, compreendeu que tais fatos, por si só, não configuram a excepcionalidade exigida para que o Poder Judiciário interfira na esfera administrativa. Isso porque a política pública destinada ao atendimento sanitário dessa população foi escolhida e promovida, estando na seara da discricionariedade administrativa, não cabendo o julgamento pelos desembargadores sobre sua conveniência.

Segundo o julgado do Tribunal Regional da 5ª Região, o Poder Judiciário somente poderia interferir na atividade administrativa em casos de excepcional ilegalidade ou inconstitucionalidade. Caso contrário, estaria invadindo esfera de Poder diverso, fragilizando o princípio constitucional da separação de poderes. Assim, poderia o Tribunal determinar que a Administração Pública adotasse medidas assecuratórias de direitos constitucionalmente reconhecidos como essenciais, o que já havia sido feito.

Além da deferência ao contrato já assinado, o Tribunal também reconheceu o enorme prejuízo à saúde financeira da Prefeitura de Guaru caso o Judiciário elegesse prioridades orçamentárias aos governantes, alocando os recursos para a realização de obras de saneamento que já estão em curso.

Assim, se não caberá ao Poder Judiciário o endereçamento de políticas públicas, quais pleitos chegarão às mesas de juízes e desembargadores sobre saneamento básico? Nenhuma legislação, por melhor gestada e discutida que seja, está livre de contradições e problemáticas que só são percebidas quando postas em prática. Em outras palavras: o Novo Marco do Saneamento apresentará incongruências em sua execução que demandarão interpretação judicial.

Há um tema passível de futuras e grandes discussões: a dúvida deixada pela redação do caput e pelo §4° do art. 11-A, da Lei nº 14.026/20. O caput prevê que os contratos de saneamento básico que prevejam a subdelegação dos serviços deverão limitá-la a 25% do seu valor. Isso significa que, para que o prestador de serviço execute suas atividades, só poderá subdelegá-las dentro da limitação imposta.

No entanto, o referido caput não deixa claro se a limitação seria aplicável a concessões e Parcerias Público-Privadas. Já o §4° do mesmo artigo traz a previsão de que somente as concessões e PPPS já em fase de estudos não seriam abrangidas pela limitação. Por essa exceção, poderia-se compreender que as demais PPPs e concessões deveriam se submeter à limitação do caput.

Alguns meses após a entrada em vigor do Novo Marco, o Governo Federal expediu o Decreto nº 10.710/21, que em seu artigo 7º, §4º, confirmou a redação do art. 11-A, §4°, no sentido de que a limitação é aplicável a concessões e PPPs. No entanto, especialistas e empresas estatais interpretam a norma de forma diferente e consideram que o decreto não teria o poder de restringir a subdelegação para as concessões[2].

Para eles, a limitação à delegação pode dificultar ou até mesmo inviabilizar o modelo de contratação por PPP, uma vez que o repasse de uma parte da operação garante os investimentos necessários sem sobrecarregar o balanço da concessionária, ao mesmo tempo em que acelera as obras.

Assim, do ponto de vista prático e pensando na corrida para a universalização do saneamento, atingindo as metas estabelecidas pelo próprio marco legal, interpretar os referidos artigos de forma com que realmente haja esse percentual limitador parece cingir o caráter viabilizador de desenvolvimento no setor proporcionado pela celebração de Parcerias Público-Privadas.

Dados da Radar PPP[3] apontam, em julho de 2022, a existência de cerca de 130 contratos de PPP e concessão no segmento de água e esgoto, enquanto que no âmbito dos resíduos sólidos, há mais de 60 contratos. Isto é, um crescimento exponencial do setor, alavancado por este modelo de serviço.

A Companhia de Água e Esgoto do Ceará (CAGECE) e a Companhia de Saneamento do Paraná (SANEPAR), possuem projetos “na rua” estruturados e baseados nas normas supramencionadas. Todavia, futuros projetos podem encontrar dificuldades de estruturação de acordo com essa dúvida normativa e é provável que o Judiciário venha a ser instado a debater sobre. Será em casos assim que ele terá participação ativa na aplicação do Novo Marco Legal: não determinando qual será o modelo escolhido pelo Poder Executivo, mas sim, auxiliando-o a desvendar incongruências legislativas que freiem o desenvolvimento dos projetos.

O que deve-se esperar, em suma, é a cooperação entre todos aqueles envolvidos, de maneira teórica ou técnica, no atingimento da universalização do saneamento básico no tão esperado 2033. Para que os projetos de saneamento sigam crescendo e atingindo os objetivos impostos pelo Novo Marco, esse e temas que ainda surgirão no dia a dia das concessões precisarão ser analisados com sensibilidade pelo Poder Judiciário, que na prolação de uma decisão pode promover segurança jurídica ou barrar as iniciativas em andamento.

Poder Legislativo, Executivo e Judiciário devem buscar durante suas atuações e, guardadas suas respectivas competências, proporcionar um ambiente jurídico e regulatório claro e sem maiores entraves, permitindo projetos e investimentos em busca do atingimento das metas de universalização.

[1] (TRF5, 2ª T., PJE 0800199-84.2015.4.05.8504, Rel. Des. Federal Leonardo Augusto Nunes Coutinho, Data da assinatura: 26/07/2022) [2] Disponível em: https://valor.globo.com/empresas/noticia/2022/08/20/ppps-de-saneamento-se-multiplicam-e-colocam-em-xeque-restricao-legal.ghtml. Acesso: 14 set. 2022. [3] Disponível em: https://radarppp.com/wp-content/uploads/20220708-termometro-do-radar-de-projetos-agua-esgoto.pdf. Acesso: 14 set. 2022.

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