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Esperar o inesperado: ferramentas eficientes para lidar com riscos contratuais

Como os empreendimentos em estruturação serão capazes de aprender com o momento atual?


Isadora Cohen

Luisa Dubourcq Santana

Publicado originalmente no JOTA



A preocupação com os riscos em contratos de longo prazo não é novidade para os profissionais do setor. Ao menos desde 2004, com a edição da lei federal de PPPs, o tema tem alcançado maior relevância e ocupado a agenda dos atores públicos e privados encarregados da modelagem e gestão de projetos de infraestrutura.

A despeito disso, em cenário de maior instabilidade como o vivido atualmente – em que fatores de risco como pandemia e guerra impactam toda a cadeia de fornecimentos global –, surgem complexidades adicionais que demandam a adoção de soluções criativas para assegurar a estabilidade dos contratos mesmo diante dos solavancos que se apresentam.

Com efeito, a materialização destes riscos acarreta escassez de insumos e variações acirradas de preços entre o previsto e o verificado na prática, além de incerteza sobre o valor efetivo dos investimentos demandados para o projeto e, por conseguinte, preços referenciais possivelmente pouco assertivos diante da nova realidade macroeconômica. É dizer, o montante de receitas e despesas previsto para o prazo contratual, que baliza as decisões de investimento e o fluxo de caixa projetado do empreendimento, é impactado por fatores externos e, com isso, são demandadas medidas para equalizar o cenário e minorar os danos causados à longevidade da concessão.

Apenas para ilustrar, notícias recentes dão conta de um aumento de 32% no preço dos fertilizantes no Brasil[1], além de incrementos superiores a 60% no preço do barril de petróleo[2], conjugado a um panorama de alta de juros e do aumento da inflação no país[3], o que obviamente impacta toda a cadeia produtiva nacional.

Nesse contexto, procuradorias jurídicas, consultores privados e entidades de fiscalização e gestão contratual têm se ocupado de um mesmo desafio: como compatibilizar o modelo inicialmente concebido para o projeto com a nova e intricada realidade, que impõe a reavaliação de custos para assegurar a continuidade dos investimentos e da operação contratual? Se não é possível evitar a concretização destes fatores de risco que se conectam com o cenário econômico mundial, é preciso encontrar ferramentas robustas para arrefecer seus efeitos no âmbito dos contratos.

Alguns mecanismos podem ser pensados para, se não evitar, reduzir o impacto da materialização do impalpável. E, felizmente, a prática contratual brasileira já tem vislumbrado a importância da inclusão de alguns desses arranjos.

É importante compreender, desde logo, que nenhum mecanismo contratual é panaceia capaz de, isoladamente, evitar a materialização de riscos ou solucionar todo e qualquer impacto ou desequilíbrio causado ao contrato por fatores externos. No entanto, a existência de uma variedade de ferramentas para o tratamento dos riscos confere maior flexibilidade e adaptabilidade à concessão, contribuindo para que as partes consigam enfrentar e superar o cenário de crise.

Um primeiro arranjo a ser pensado é uma conta de reserva de contingência, como a que havia sido contemplada na modelagem inicial do projeto do Rodoanel Norte de São Paulo (concebido, originalmente, como uma concessão comum e, posteriormente, remodelado para uma parceria público-privada).

Nesse sentido, nas concessões comuns em que há o pagamento de outorga, a sistemática parece ser mais simples. Pode-se destinar o pagamento das outorgas para conta reserva, específica e vinculada, distinta do caixa único do Tesouro, sob a custódia de agente garantidor, permitindo que os recursos sejam destinados ao pagamento de obrigações incontroversas decorrentes da materialização de contingências e riscos políticos, inclusive em caso de extinção antecipada do contrato. Era exatamente esta a previsão contida na modelagem inicial do Rodoanel Norte paulista antes de sua recente reconfiguração.

De qualquer forma, mesmo nas parcerias público-privadas – em que não há o pagamento de outorga pelo particular – é possível se cogitar de mecanismos contratuais assemelhados. O projeto do Rodoanel da Região Metropolitana de Belo Horizonte, cujo edital foi recentemente publicado e que já foi destaque nesta coluna[4] por outros aspectos inovadores em sua modelagem – a exemplo do sistema free flow e da incorporação de critérios ESG no contrato – também se destaca pela preocupação com o tratamento das contingências contratuais.

Nesse sentido, o referido contrato prevê a vinculação de recursos oriundos de reparações pagas pela companhia Vale ao Poder Executivo Estadual como mecanismo de adimplemento e garantia das obrigações pecuniárias devidas pelo Poder Concedente no bojo da parceria público-privada.

Outros mecanismos contratuais são importantes para mitigar as consequências da materialização de riscos diversos, em especial aqueles decorrentes de uma alteração no cenário macroeconômico global, como o atualmente vivenciado, em que se dificulta a previsibilidade das receitas e despesas da concessionária. É o caso, por exemplo, das bandas de compartilhamento do risco de demanda, da adoção de cláusulas modernas de reajuste (refletindo de forma acurada a realidade do setor mediante a aplicação de fórmula paramétrica e não necessariamente de um índice único) e da previsão de revisões ordinárias e extraordinárias do contrato de concessão, oportunidade em que as partes poderão reavaliar o impacto dos riscos sobre o projeto.

Pode-se cogitar, ainda, da possibilidade de se destinar parcela específica das receitas da concessionária para a constituição de um colchão de liquidez, que ficaria retido ao longo da execução contratual e seria acionado em caso de eventos imprevistos, garantindo que o privado disporia de recursos em momentos de contingências e permitindo a continuidade dos investimentos a cargo da concessionária. A utilização deste instrumento poderia eventualmente ser compensada com outros mecanismos de reequilíbrio contratual, mitigando os riscos de paralisação da concessão ou da redução de investimentos pela indisponibilidade de recursos imediatos.

Esta coluna já teve a oportunidade[5], no passado, de debater a importância do adequado planejamento e tratamento dos riscos e contingências em projetos de concessão e parceria público-privada no país. Apesar de algumas provocações acadêmicas sobre o tema, como é o caso de pesquisa desenvolvida no âmbito do Banco Interamericano de Desenvolvimento[6] sobre os passivos contingentes nas parcerias público-privadas, a prática dos projetos brasileiros ainda pode avançar na consolidação de mecanismos sólidos para o tratamento dos riscos, assegurando liquidez em cenários de grandes incertezas.

Com efeito, um grande desafio na gestão dos projetos de infraestrutura é assegurar que o Poder Público deterá recursos suficientes para fazer frente a obrigações pecuniárias inesperadas, decorrentes da materialização de riscos diversos, para as quais não se planejou para adimplir – o que se agrava em momentos de crise mundial, em que os impactos são verificados em toda a teia contratual da Administração Pública e não apenas em um contrato de concessão individualmente considerado.

A instituição de mecanismos intracontratuais para garantir estes projetos, portanto, pode ser essencial para assegurar sua perenidade e a continuidade dos investimentos mesmo em um cenário de anormalidade.

Sendo os cenários e momentos de incerteza inerentes aos projetos de longo prazo, a existência de mecanismos como os mencionados para o caso de materialização de riscos, desvinculados da disponibilidade orçamentária imediata da Administração Pública, contribuem para conferir maior segurança jurídica e financeira aos investidores privados, favorecendo a longevidade das parcerias e a geração de benefícios diretos e externalidades positivas aos usuários dos serviços concedidos.

Se há uma certeza em meio a tantas incertezas é que a crise atual não é a primeira e nem será a última a acometer a economia local e mundial e, por conseguinte, os projetos de infraestrutura. Resta saber, portanto, se e como os empreendimentos em estruturação serão capazes de aprender com o momento atual e incorporar ferramentas criativas e robustas de gestão de risco.

[1] https://www.cnnbrasil.com.br/business/em-dois-meses-de-guerra-precos-dos-fertilizantes-sobem-ate-32-segundo-cna/ [2] https://valor.globo.com/empresas/noticia/2022/05/02/diesel-em-alta-gera-pressao-sobre-petrobras.ghtml [3] https://valor.globo.com/financas/noticia/2022/05/02/mercado-aguarda-sinais-do-bc-em-reuniao-que-deve-levar-selic-a-1275.ghtml [4] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/infra/modelagem-rodoanel-metropolitano-belo-horizonte-28012022 [5] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/infra/o-impacto-orcamentario-das-contingencias-em-parcerias-publico-privadas-22012021; https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/infra/por-que-nao-planejar-para-inovar-13082021; https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/infra/quando-o-tiro-sai-pela-culatra-a-ilusao-do-contingenciamento-nas-ppps-29012021. [6] https://publications.iadb.org/pt/passivos-contingentes-em-projetos-de-concessao-e-parceria-publico-privada-uma-analise-do-contexto-e

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