O caso do Cais Mauá e a oportunidade de revitalização urbana através da ascensão do mercado imobiliário
Isadora Cohen
Carolina Carelli
Matheus Cadedo
Publicado originalmente no JOTA
Não é de hoje que aqueles que moram em grandes e médios centros urbanos se deparam, durante o dia a dia, com grandes áreas públicas ociosas, degradadas e, muitas vezes, em verdadeiro estado de abandono. Geralmente o cenário vem acompanhado de edificações e infraestruturas de grande valor histórico e cultural local e regional, inacessíveis ao público.
Governos, muitas vezes bem intencionados, têm se mostrado incapazes de despender grandes quantidade de investimentos para revitalizar, por conta própria, essas áreas urbanas inutilizadas. O que fazer?
Recentemente o Estado do Rio Grande do Sul buscou responder tal questão, apostando em soluções que contam com o esforço conjunto da iniciativa privada para a revitalização do Cais Mauá, em Porto Alegre. A novidade diz respeito à modelagem do projeto, que agrega diferentes contratos com diferentes atores privados para concretizar um objetivo de política pública.
Em síntese, o projeto congrega alienações de áreas portuárias com concessões de usos, estabelecendo subsídios cruzados que permitem a aplicação dos recursos obtidos nas vendas na revitalização das áreas a serem concedidas.
Para isso, o Cais Mauá foi dividido em diferentes setores. Os mesmos compreendem os terrenos urbanos em que estão localizados o Gasômetro (Setor 1), Armazéns (Setor 2-A e 2-B) e as Docas (Setor 2-C).
É na região das Docas que ocorrerá a alienação, com a finalidade de unir a necessidade de modernização da área com o fomento do setor imobiliário. Nas áreas poderão ser construídos empreendimentos imobiliários residenciais e comerciais, desde que observada a legislação urbana vigente.
Já o Gasômetro e os Armazéns, abrigarão espaços destinados a gastronomia, lazer, cultura, entretenimento, conhecimento histórico e eventos. Nesse sentido, os mesmos serão operados a partir de contratos de concessão de uso a fim de garantir a constante manutenção da área, junto à realização e planejamento de eventos culturais e de promoção social.
Como a concessão de uso não envolve uma contraprestação paga pelo Poder Público, o próprio privado será o responsável por desenvolver atividades que permitam o retorno de seus investimentos, a partir da exploração das áreas de alguns dos antigos armazéns de carga concedidos, permitindo a instalação de restaurantes e pequenos comércios locais.
Em síntese, esse diferentes arranjos com a iniciativa privada permitem a revitalização da área do Cais, sem a exigência do desembolso de recursos públicos. Observa-se, na prática, como diferentes contratos e negócios que envolvem o setor privado podem ser conciliados, de forma a permitir o atingimento de objetivos previamente determinados.
Contudo, também devem se destacar alguns cuidados e pontos de atenção a serem observados na modelagem do projeto do Cais Mauá, sobretudo no que diz respeito à regulação dos subsídios cruzados.
Até o momento ainda não está claro como este sistema será operado juridicamente e concretamente.Restam responder questões como: (I) quem será o responsável pelas obras de revitalização no Gasômetro e Armazéns, os futuros concessionários ou o Poder Público? (II) caso o ente privado seja o responsável pelas obras, como os recursos da alienação serão transferidos pelo Estado ao empreendedor privado?
Devem-se destacar possíveis problemáticas orçamentárias que podem ser observadas, caso os recursos das alienações sejam transferidos diretamente aos cofres públicos, sem as devidas precauções.
A preocupação é relevante pois uma simples alienação e transferência de recursos às contas do Estado, não vincula a necessária aplicação destes recursos com o intuito de proceder a revitalização das áreas de armazéns e gasômetro. Nada impediria que esses recursos fossem aplicados, de forma discricionária, em outras finalidades e projetos. O tema ganha ainda mais relevância em tempos de mudanças de governo, em que práticas e objetivos firmados nas gestões anteriores podem ser descontinuadas.
Algumas soluções podem ser pensadas para solucionar o problema. Constituir um fundo público contábil, por exemplo, com a finalidade exclusiva de gerir os recursos e direcioná-los à revitalização do Cais seria uma forma de conferir segurança jurídica à lógica dos subsídios cruzados, vinculando a finalidade de uso dos recursos arrecadados com as alienações.
Outras discussões poderiam ser no sentido de permitir um aporte direto aos concessionários de uso, caso estes sejam os responsáveis pela realização das obras de revitalização. A assunção direta das obras por parte dos privados pode ser importante, com o intuito de garantir sinergias com as futuras operações privadas que serão desenvolvidas no local.
Com essas medidas, articulações entre diversos empreendimentos público-privadas ganham mais confiança perante o mercado, permitindo uma política pública mais assertiva.
Se bem sucedido, o projeto de revitalização do Cais Mauá permitirá a concretização de uma política pública até então secundarizada, pela falta de recursos públicos. Essa pode ser uma iniciativa inovadora, observados os cuidados pontuados, fonte de inspiração para diversos outros exemplos de zonas urbanas em degradação ou estado de abandono no país.
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