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Cenário de instabilidades jurídico-política acabou consolidando o novo marco do saneamento


Isadora Chansky Cohen

Luísa Dubourcq Santana

Ana Carolina Sette

Matheus Cadedo


Publicado originalmente no JOTA



A edição da Medida Provisória nº 1.154, de 1.1.2023, provocou grande alvoroço no setor de infraestrutura e virou notícia em diversos veículos de comunicação, que enfatizaram a modificação do papel e das atribuições da Agência Nacional de Água e Saneamento Básico (ANA). A medida gerou agitação ao alterar a competência da agência para editar normas de referência e regular o setor de saneamento[1] que, aparentemente, teriam sido transferidas para a estrutura interna do Ministério das Cidades.

Foram sentidas reações econômicas quase instantâneas[2]. Isso se deu, sobretudo, no âmbito do mercado de capitais, cujas estatais listadas em bolsa perderam parcela não desprezível de seus valores de mercado.

E por que nesse caso o barulho no mercado foi alto? Desde a publicação do novo marco do saneamento (Lei nº 14.026/2020), foi conferida à ANA, autarquia sob regime especial, com autonomia administrativa e financeira, vinculada ao Ministério do Desenvolvimento Regional, a finalidade de implementar, no âmbito de suas competências, a Política Nacional de Recursos Hídricos e de instituir normas de referência para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico.

As novas atribuições e competência regulatórias, antes limitadas aos recursos hídricos, demandaram inúmeras adaptações de cunho técnico, organizacional, operacional, de governança, entre outros, a um custo econômico-financeiro significativo.

Os esforços da Agência para adaptação à nova legislação foram perceptíveis ao longo dos anos pelos atores do setor e foram indicando ao mercado uma robustez institucional e regulatória. Inclusive, esse foi um dos pontos questionados por muitos quando da edição do novo marco, mas felizmente superado com o passar do tempo.

De forma geral, quanto maior o nível de permeabilidade da intervenção política em setores regulados e sobre os prestadores de serviços públicos, menor é o interesse em adquirir e manter ações de sociedades sujeitas a tais políticas. Isso porque o acionista deixa de ter previsibilidade acerca das ações que serão impostas à companhia. Aliás, a mera percepção de instabilidade já gera efeitos devastadores no mercado.

Os raros exemplos de empresas de saneamento listadas em Bolsa, como a SABESP e a SANEPAR, parecem ter um ponto em comum: um ambiente regulatório minimamente independente e técnico, sujeito à existência de agências reguladoras autônomas, com mandatos de diretorias intercalados entre os diferentes governos.

Nessa linha, a SABESP conta com a atuação da Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo (Arsesp), enquanto a SANEPAR conta com a Agência Reguladora do Paraná (AGEPAR). A atuação política, nesses casos, fica muitas vezes restrita, se limitando a chancelas de reequilíbrios contratuais ou tarifários, aplicados por meio de normativos técnicos definidos pela própria agência.

A realidade, contudo, é que a maioria dos Estados e Municípios brasileiros não detém capacidade financeira e operacional para sustentarem agências com pessoal qualificado, que sejam reconhecidos e denotem confiança no mercado. Daí viria o papel primordial da ANA, como uma padronizadora nacional de metodologias analíticas de averiguação da qualidade dos serviços prestados e de regras contratuais de reequilíbrios econômico-financeiros, composições tarifárias, reversibilidade de bens, entre outros.

As chamadas “normas de referência” poderiam constituir instrumento capaz de amadurecer o arcabouço institucional de saneamento (dando mais previsibilidade e segurança jurídica ao setor) e potencializando, quem sabe, o desenvolvimento no mercado de capitais no âmbito das companhias de saneamento (não somente estatais, mas concessionárias privadas e futuras empresas privatizadas).

Movimentos governamentais que geram incertezas - que, diga-se de passagem, não são exclusividade do âmbito federal e nem do atual momento político brasileiro -, podem ter impacto significativo no retrato de subdesenvolvimento do mercado acionário de empresas de saneamento listadas em bolsa.

O posicionamento do mercado ficou evidente após a publicação da MP 1.154. É essencial que se dê condições para que a ANA possa atuar como ente regulador independente e autônomo, em conformidade com as delimitações do Novo Marco.

A boa notícia é que o Governo Federal pareceu sensível a essa percepção e indicou, por meio de declarações e notícias, que o arranjo da ANA na MP teria sido equivocado e será corrigido[3].

O interessante é que o conceito de regulação independente no setor foi introduzido pelo primeiro marco legal do saneamento - a Lei 11.445, nos idos de 2007 (segundo mandato do atual presidente). A partir daquele momento, agências ao redor do Brasil passaram a fiscalizar - ainda que de maneira incipiente - a qualidade dos serviços prestados por empresas estatais e concessionárias. Até mesmo em benefício da população mais carente, uma boa regulação é importante.

Diga-se de passagem, para além da segurança jurídica, a função primordial de uma agência é, mesmo, defender o consumidor. Muito da reação contrária à uma regulação independente deve derivar do receio de algumas empresas de saneamento que não oferecem um serviço de qualidade para a população. Historicamente, no intuito de não explicitar a ineficiência dessas empresas - em sua maioria estatais - opuseram resistência a um fiscalizador externo que cobre delas melhores entregas aos usuários.

De qualquer modo, mesmo com eventuais desgastes, o Governo Federal sinalizou um maior fortalecimento do novo Marco. Essa vitória do Novo Marco do Saneamento - embora tenha se dado em meio a um cenário político, digamos, conturbado - pode ser uma sinalização positiva de que um ambiente mais robusto ao investimento será respeitado e continuado.

[1]A agência havia tido sua subordinação transferida para o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima e, aparentemente, sua competência regulatória de saneamento transferida para o Ministério das Cidades. Contudo, as competências da agência no Novo Marco de Saneamento não tinham sido transferidas, gerando uma grandes dúvidas acerca do arranjo realizado. Veja-se mais em: Empresários do setor de saneamento reagem a mudanças em agência - 03/01/2023 - UOL Economia. Acesso em 04 de janeiro de 2022. [2]Somente as 5 principais estatais federais perderam cerca de 31,8 bilhões em valor de mercado. Pontua-se que isso não é exclusividade das alterações feitas em relação à ANA. Veja mais em: Estatais perdem R$ 31,8 bilhões em valor de mercado no primeiro pregão do ano (cnnbrasil.com.br). Acesso em 04 de janeiro de 2022. Mesmo assim, estatais importantes de saneamento perderam valor de mercado. A cotação das ações da SABESP, por exemplo, saiu de uma cotação média de 56 reais por ação (em 30 de dezembro) para uma média de 53 reais em 03 de janeiro, conforme o índice SBSP3 • BVMF. [3]Autoridades do novo governo informaram que a competência regulatória da ANA será mantida, inclusive para edição de normas de referência.Veja-se, por exemplo: Miriam Belchior diz que Agência Nacional de Águas deve manter regulação do saneamento | GloboNews Mais | G1. Acesso em 04 de janeiro de 2022.

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