Ferramenta muda paradigma na forma como equilibramos geração de valor público e sustentabilidade dos projetos
Por: Isadora Cohen, Milton Gomes. Publicado originalmente no JOTA.
O Brasil enfrenta um desafio histórico na atração de investimentos para infraestrutura: como convencer investidores nacionais e internacionais a comprometerem recursos em projetos de longo prazo num país ainda marcado por instabilidades econômicas e incertezas regulatórias?
A resposta passa necessariamente pela construção de mecanismos que garantam maior segurança jurídica e previsibilidade aos contratos de concessão.
Nesse contexto, uma inovação silenciosa vem transformando a maneira como estruturamos projetos de infraestrutura no país. Nos últimos anos, o setor rodoviário brasileiro tem implementado um sofisticado mecanismo de gestão financeira conhecido como sistema de contas vinculadas, uma ferramenta que representa mais que uma simples evolução técnica – é uma mudança de paradigma na forma como equilibramos a geração de valor público com a sustentabilidade dos projetos.
O mecanismo desafia uma visão tradicional do setor público, segundo a qual projetos lucrativos deveriam necessariamente gerar receitas imediatas para o Tesouro através de outorgas. Em vez disso, propõe uma abordagem mais estratégica: a criação de reservas financeiras dentro do próprio projeto, que funcionam como um seguro contra eventos futuros adversos e garantem a manutenção de tarifas adequadas para os usuários.
Esta mudança de perspectiva é particularmente relevante num momento em que o Brasil busca reduzir seu risco-país e atrair investimentos expressivos para sua infraestrutura. Afinal, em contratos que costumam durar três décadas, a capacidade de oferecer instrumentos concretos de previsibilidade e estabilidade financeira pode ser o diferencial entre o sucesso e o fracasso de um projeto.
É neste contexto que o mecanismo de contas vinculadas se apresenta como uma alternativa inteligente. O sistema funciona como um mecanismo de gestão de riscos contratuais. Através de um conjunto de contas bancárias ligadas ao projeto, cada qual com funções específicas, é possível o direcionamento de receitas geradas pelo projeto para finalidades predeterminadas.
Uma conta pode ser dedicada à proteção contra variações cambiais, outra para garantir a manutenção de descontos para usuários frequentes, outra para receber multas por evasão de pedágio, dentre outras finalidades. Cria-se um colchão de liquidez que permite absorver impactos financeiros sem a necessidade de recorrer a aumentos tarifários ou aportes públicos emergenciais.
Uma das principais fragilidades dos contratos de concessão de rodovia tradicionais é sua dependência excessiva do aumento tarifário ou da ampliação de prazo como instrumentos de reequilíbrio econômico-financeiro. Este modelo se mostra especialmente vulnerável considerando que reajustes de pedágio são invariavelmente um tema sensível, sujeito a pressões políticas e resistência social.
O mecanismo de contas vinculadas permite que impactos financeiros que constituam risco do poder concedente podem ser absorvidos sem necessariamente recorrer a aumentos tarifários imediatos.
O sistema demonstra sua eficácia especialmente em dois momentos críticos dos contratos de concessão. O primeiro ocorre durante as reclassificações tarifárias: quando uma concessionária entrega obras de duplicação, por exemplo, há previsão contratual de aumento de até 30% na tarifa. Com o mecanismo de contas vinculadas, os recursos acumulados podem absorver total ou parcialmente este impacto, mantendo a tarifa em patamares adequados para os usuários.
O segundo momento crucial são as revisões quinquenais, tradicionalmente períodos de grande tensão nos contratos de concessão. Estas revisões, realizadas a cada cinco anos, frequentemente identificam necessidades de novos investimentos ou adequações no projeto que poderiam resultar em aumentos tarifários significativos.
O mecanismo de contas vinculadas oferece uma solução mais equilibrada: os recursos acumulados podem financiar parte destes novos investimentos, reduzindo ou eliminando a necessidade de aumentos tarifários imediatos. Na prática, isso significa que melhorias na infraestrutura podem ser implementadas sem onerar diretamente o usuário, utilizando recursos que o próprio projeto gerou e preservou ao longo do tempo.
Nessa perspectiva, o aporte de recursos nas contas vinculadas pode ser compreendido como um mecanismo bastante sofisticado de desconto tarifário que, em vez de se materializar imediatamente no momento do leilão através de uma tarifa inicial mais baixa, se distribui ao longo dos 30 anos do contrato.
É como se o desconto fosse guardado em uma poupança do projeto, sendo utilizado estrategicamente nos momentos em que seria necessário aumentar a tarifa. Esta característica de diferimento temporal não altera sua natureza jurídica: assim como um desconto tarifário no momento do leilão constitui um benefício concedido aos usuários, os recursos depositados nas contas vinculadas mantêm seu caráter de recurso privado, com utilização vinculada a finalidades específicas definidas no contrato.
Mais um exemplo pode bem ilustrar o uso das contas vinculadas para atingir finalidades que, sem esse sistema, não seriam possíveis. Nos contratos da 5ª etapa do programa de concessões, a ANTT implementou um aumento automático de 5% na alíquota dos recursos vinculados nos anos finais da concessão, ou seja, desconta-se 5% das receitas da concessão, que são depositados em uma conta vinculada, para que esses recursos funcionem como uma garantia para assegurar que os parâmetros de desempenho sejam mantidos até o encerramento do contrato.
Se as obrigações previstas forem adequadamente cumpridas, esses recursos são creditados em favor da concessionária no ajuste final de resultados. Esta estrutura cria um incentivo financeiro concreto para a manutenção da qualidade do serviço até o último dia da concessão.
Uma das principais críticas ao mecanismo de contas vinculadas vem da visão tradicional de gestão orçamentária pública, que argumenta que valores gerados pela exploração de ativos públicos deveriam necessariamente ser recolhidos à conta única do Tesouro Nacional. Este entendimento, embora compreensível do ponto de vista da unidade orçamentária, parte de duas premissas equivocadas.
A primeira premissa incorreta é a de que todo valor gerado por um projeto de concessão constitui necessariamente uma outorga. Na realidade, cabe ao poder concedente, no exercício legítimo de sua discricionariedade administrativa, definir em cada projeto específico quais valores serão efetivamente cobrados a título de outorga e quais serão mantidos no projeto para garantir sua sustentabilidade. Não existe norma legal que obrigue a extração de outorga de projetos superavitários.
A segunda premissa equivocada é a caracterização dos recursos depositados nas contas vinculadas como recursos públicos. Estes valores têm natureza jurídica privada e funcionam em regime jurídico similar ao dos bens reversíveis da concessão - são recursos privados afetados à prestação do serviço público, com destinação específica definida em contrato.
Esta afetação significa que, embora privados, estes recursos estão sujeitos a regras específicas de utilização e não podem ser livremente dispostos pela concessionária, garantindo assim sua preservação para as finalidades previstas no projeto.
Vale ressaltar que o mecanismo de contas vinculadas já passou por extensivo escrutínio dos órgãos de controle. O Tribunal de Contas da União (TCU) já analisou e aprovou sua implementação em 14 projetos de concessão, reconhecendo a importância desta inovação para o desenvolvimento do setor de infraestrutura. A robustez do sistema é garantida por uma estrutura clara de governança, na qual as contas são administradas por um banco depositário independente, que realiza movimentações apenas segundo regras predefinidas em contrato.
O poder concedente mantém acesso em tempo real aos saldos e movimentações, e apenas ela pode autorizar transferências entre as diferentes contas do sistema, em uma arquitetura institucional que garante transparência e controle efetivo sobre os recursos, desmistificando preocupações sobre eventuais "orçamentos paralelos".
A estruturação de contratos de concessão envolve dezenas de decisões complexas sobre alocação de riscos, mecanismos de incentivo e instrumentos de gestão financeira. O mecanismo de contas vinculadas representa uma dessas escolhas: a opção por manter parte dos recursos gerados dentro do próprio projeto, criando reservas que podem ser utilizadas estrategicamente ao longo da execução contratual.
Esta decisão específica sobre a gestão financeira do contrato ilustra como o poder concedente pode exercer sua discricionariedade administrativa para encontrar soluções que equilibrem diferentes objetivos como a sustentabilidade do projeto, a modicidade tarifária e a atratividade para investidores qualificados.
É importante ressaltar que não existe uma fórmula única para o sucesso em concessões de infraestrutura, pois cada projeto tem suas particularidades e demanda análise específica de suas necessidades e riscos. O mecanismo de contas vinculadas é apenas uma das ferramentas disponíveis ao gestor público, que deve avaliar sua pertinência caso a caso, considerando as características específicas de cada projeto.
O que podemos extrair desta experiência é que a inovação em instrumentos contratuais, quando fundamentada em análise técnica sólida e respaldada juridicamente, pode contribuir significativamente para o aperfeiçoamento das concessões públicas no Brasil.
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